Sete meses depois, a linguagem usada por Putin é ainda mais sombria do que nas primeiras horas daquele 24 de fevereiro. Na época, ele advertiu o Ocidente de que a Rússia responderia imediatamente àqueles que se colocassem em seu caminho, com consequências "como vocês nunca viram em toda a sua história".

Em seu último discurso, transmitido nesta quarta-feira (21), ele deu ainda mais corpo àquela ameaça. "A integridade territorial de nossa pátria, nossa independência e liberdade serão asseguradas, e vou enfatizar isso novamente, com todos os meios à nossa disposição. Aqueles que tentam nos chantagear com armas nucleares devem saber que os ventos prevalecentes podem virar em sua direção", disse.

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O líder russo aumentou drasticamente as apostas –bem no momento em que a Rússia embarca em um processo apressado para expandir o que constitui essa "pátria", por meio de referendos organizados de forma precipitada em territórios ocupados que se destinam a absorver partes da Ucrânia para a Rússia: Donetsk, Lugansk, grande parte de Kherson e Zaporizhzhia.

O anúncio desses referendos na terça-feira (20) foi repentino e sincronizado. A ideia de que eles poderiam ser organizados dentro de poucos dias em áreas onde as hostilidades continuam é absurda, especialmente porque alguns oficiais nessas áreas propam adiar as votações para ingressar na Rússia até que as condições de segurança melhorem. Igualmente absurda é a noção de que a adesão à Rússia veio espontaneamente dos territórios.

Mas essa não é a questão. Matthew Schmidt, professor associado de segurança nacional e ciência política na Universidade de New Haven, disse que Putin está usando os referendos para justificar a mobilização.

Putin tem dois públicos em mente. Anatol Lieven, diretor do Programa Eurásia do Instituto Quincy, explicou que Putin quer "persuadir os Estados Unidos e/ou os europeus a levar a sério a negociação de um acordo para acabar com a guerra, mostrando que, caso contrário, a Rússia tomará medidas radicalmente intensificadas que não só forçarão o Ocidente a escalar de volta, mas também descartarão qualquer possibilidade de paz por um longo tempo".

Alexander Baunov, da Carnegie Endowment, comentou sem rodeios. Em uma série de tuítes antes do discurso de Putin, ele escreveu que a mensagem para os aliados da Ucrânia é a seguinte: "vocês escolheram lutar contra nós na Ucrânia, agora tentem lutar contra nós na Rússia, ou, para ser mais preciso, no que chamamos de Rússia".

Schmidt afirmou que o público principal de Putin é o nacional. Segundo ele, o líder russo está tentando recuperar a iniciativa e endurecer o moral da população russa. O presidente também pode estar esperando por um salto em sua popularidade, semelhante ao amplo apoio público visto em relação à anexação da Crimeia pela Rússia em 2014. "A mobilização não é uma decisão militar, mas uma maneira de tentar controlar a narrativa sobre a guerra, que ele percebe que está perdendo", contou à CNN.

Contra o pano de fundo das más notícias que chegam das linhas de frente, Schmidt observou: "a moral do público é a moral do exército".

"Putin tem de dizer que a grande Rússia está sob ataque. Ele tem muita dificuldade em vender isso, e isso coloca sua liderança sob muita pressão", acrescentou Schmidt.

Baunov acredita que o objetivo é transformar a invasão russa de um país vizinho em uma guerra defensiva, uma distinção que "tornaria o conflito mais legítimo aos olhos dos russos comuns, deixando o Kremlin livre para tomar as decisões e as medidas que julgar necessárias".

Mas a mobilização é um risco enorme, alertou Schmidt. Leva-se tempo para treinar, equipar, organizar –e não se faz nada para melhorar as maiores deficiências da Rússia.

Grandes desafios para os recrutas russos

Moscou enfrenta os mesmos enormes obstáculos logísticos que frustraram os últimos seis meses de guerra. Suas forças tiveram tantas perdas materiais que, de acordo com autoridades dos EUA, o Ministério da Defesa russo recorreu à Coreia do Norte para obter munição. Seu último revés no nordeste da Ucrânia, em Kharkiv, deixou algumas de suas unidades de tanques de elite gravemente prejudicadas.

A "mobilização parcial" anunciada por Putin também parece se apoiar em partes da população russa que já teriam sentido uma forte pressão para se inscrever no vacilante esforço de guerra da Rússia.

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O ministro da Defesa, Sergei Shoigu, disse que cerca de 300 mil reservistas estariam disponíveis.

"Essas não são pessoas que nunca ouviram falar do exército", comentou Shoigu. "São pessoas que serviram, que têm uma especialidade militar, uma experiência militar."

A mobilização é limitada, talvez para não alienar a opinião pública, ou talvez ainda para deixar espaço para novos movimentos no futuro. Shoigu afirmou: "aqueles que serviram e têm uma especialidade militar são quase 25 milhões".

Tanto Putin quanto Shoigu falaram especificamente sobre uma chamada de reservas –mas o decreto não se aplica apenas a esse grupo. Ele permite a "convocação de cidadãos da Federação Russa para o serviço militar por meio da mobilização para as Forças Armadas da Federação Russa".

Mas a dependência da Rússia de unidades chechenas, batalhões voluntários, milícias de Luhansk e Donetsk, e até mesmo condenados recrutados pela empresa militar privada russa Wagner Group desmente a alegação de que há um suprimento de veteranos pronto para ir para a linha de frente.

A mobilização "não fornecerá jovens oficiais treinados que possam liderar operações de assalto contra um exército que luta há mais de 3.000 dias", afirmou Schmidt à CNN, referindo-se ao conflito da Ucrânia com separatistas apoiados pelos russos na região de Donbass desde 2014, nem mudará uma cultura que tem tido dificuldades contra a adaptabilidade ucraniana.

Movimento nuclear

Putin não poderia ter feito uma aposta mais grave ao se referir diretamente às armas nucleares, mas observadores não estão convencidos de que ele iria, ou mesmo poderia, seguir com tal ameaça, apesar de insistir que não está blefando.

Em junho de 2020, ele assinou um decreto atualizando a doutrina nuclear da Rússia que exige citação completa. "A Federação Russa mantém o direito de usar armas nucleares em resposta ao uso de armas nucleares e outros tipos de armas de destruição em massa contra o país e/ou seus aliados."

Mas essa frase termina com uma declaração incomum: "e também no caso de agressão contra a Federação Russa com o uso de armas convencionais, quando a própria existência do Estado é posta em risco".

Lieven, do Instituto Quincy, disse que é impossível dizer se Putin aceitaria o uso de armas nucleares táticas, mas "parece duvidoso que a Rússia as use, a menos que a própria Crimeia corra o risco de cair".

Até agora, Lieven comentou com a CNN, "as estratégias de Putin falharam de forma esmagadora, tanto em termos de progresso militar no solo, quanto de pressão econômica sobre o Ocidente para buscar um acordo com a Rússia".

No entanto, acrescentou, "a Rússia mantém os meios para uma grave escalada sem armas nucleares –notadamente, a destruição da infraestrutura ucraniana e o assassinato da liderança ucraniana".

Schmidt também acredita que há pouco risco de Putin recorrer a armas nucleares táticas, "porque isso realmente envolveria a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), e ele perderia os militares russos, a fonte de seu poder".

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E, embora Putin tenha sido específico ao dizer que a mobilização parcial seria usada para defender áreas recém-ocupadas, ele não optou por estender sua ameaça nuclear à mesma ideia ampliada do que a Rússia poderia considerar como seu território no futuro.

Mas a própria menção dessas armas nucleares é obviamente concebida para complicar os cálculos do inimigo.

Para alguns observadores, a absorção formal de partes da Ucrânia pela Federação Russa corre o risco de tornar qualquer negociação para o fim do conflito na Ucrânia –por mais distante que isso possa parecer– quase impossível.

O ex-presidente russo Dmitry Medvedev disse na terça-feira (20) que, uma vez que as repúblicas forem integradas à Federação Russa, "nenhum futuro líder da Rússia, nenhum oficial será capaz de reverter essas decisões".

Contudo, Schmidt ressalta que Medvedev é um substituto, não a fonte de autoridade –e que ambos os lados assumiram posições maximalistas que poderiam eventualmente ser adaptadas ou substituídas por meio de negociação. Tal momento, no entanto, parece mais distante do que nunca.

Até agora, obviamente, o governo russo não disse que reconhecerá oficialmente os resultados do referendo. Mas seria extraordinário se um processo aparentemente sincronizado e organizado em Moscou fosse rejeitado na própria Moscou. O referendo organizado na Crimeia em 2014 foi ratificado pelos legisladores russos em uma semana.

Seja em relação ao momento escolhido para a ofensiva contra a Ucrânia (e, na verdade, se houve um), seus objetivos finais, o uso de gás natural e petróleo como arma política, e até mesmo o possível uso de armas nucleares para proteger a pátria, Putin sempre foi guiado por um desejo de manter seus adversários desequilibrados.

Esta última manobra é fiel à forma. Ela provavelmente elimina qualquer esperança de que essa guerra termine em breve, mas também demonstra que as opções de Putin estão se estreitando diante das deficiências militares que desafiam qualquer solução rápida. À medida que o conhecimento da magnitude das perdas aumenta, o presidente russo terá de equipará-la com uma magnitude de ação à altura.

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