Os exemplos mais óbvios talvez sejam as palavras relacionadas às questões citadas acima, como samba, dendê ou axé. Mas diversas outras também surgiram a partir da diáspora de negros africanos durante a colonização do país. É o caso de dengo, moleque ou bagunça.
“A sociedade brasileira é constituída de vários grupos sociais, e um deles foram os povos africanos que chegaram por vias não tão confortáveis, por conta de interesses econômicos e políticos. E duas das etnias que predominaram foram os povos bantos e os iorubás, que deixaram as suas raízes na nossa sociedade. Os povos iorubás muito com a questão da religiosidade e povos bantos também através das línguas”, explica Odara Dèlé, professora e mestranda em Educação na USP (Universidade de São Paulo).
Odara, além de estudar as palavras de origem africanas, também é fundadora do Alfabantu, um aplicativo de proposta similar ao Duolingo que pretende ensinar o idioma quimbundo (ou kimbundu) para as crianças. O quimbundo é a segunda língua oficial de Angola, país africano que também foi colonizado por Portugal.
A professora explica que esses idiomas começaram a se espalhar pelo Brasil não somente entre os escravizados, mas também por conta das mulheres que tinham contato com as crianças, que aprendiam essas palavras.
As mães de santo, as amas de leite e mucamas que ficavam dentro das casas-grandes tinham o ao cuidado das crianças e conseguiam disseminar as línguas africanas.
É difícil estimar quantas palavras de origem banto fazem parte do vocabulário brasileiro atualmente. O livro “Novo Dicionário Banto do Brasil”, escrito pelo sambista e pesquisador de culturas africanas Nei Lopes, compila a origem etimológica de mais de 250 verbetes presentes no Houaiss, um dos mais tradicionais dicionários da língua portuguesa.
“Tem algumas expressões que não imaginamos que fazem parte dos povos bantos, como 'ir para o beleléu'. Beleléu a gente imagina que seja um lugar longe, distante, mas o beleléu tem a característica como se fosse um cemitério, um lugar funeral, de morte, de algo que está muito distante de nós”, comentou Odara, citando mais um exemplo de palavra presente no nosso vocabulário.
Ela cita também que o samba, que aqui tornou-se um ritmo musical, tem como raiz ser uma espécie de oração. Banguela, expressão usada para pessoas que estão sem algum dos dentes, faz referência às pessoas vindas da região de Benguela, também em Angola.
E ginga se relaciona à Rainha Nzinga, do reino do Dongo: “Quando os portugueses foram para o continente africano, ela teve a possibilidade, a expertise de métodos de negociação para que o seu povo não fosse exterminado”.
Uma das palavras que ou a ter uma conotação negativa ao longo dos anos foi macumba, que na verdade é um instrumento de percussão bem semelhante ao reco-reco. Tanto o instrumento quanto o tocador dele, o macumbeiro, tornou-se uma forma depreciativa de se referir aos rituais das religiões de matriz africana.
“Como se fosse algo maldoso, como se alguém fizesse algo mal para você, ignorando que essa expressão religiosa é uma expressão prática de um povo específico e que ele tem as suas dimensões próprias tanto do bem e do mal, como qualquer religião”, pontuou a professora.
Odara afirma, citando os trabalhos dos linguistas Marcos Bagno e Gabriel Nascimento, que existe preconceito linguístico contra o vocabulário de origem africana, tidas como distantes da chamada norma culta.
“A forma como a pessoa fala já marca os seus lugares dentro da sociedade. Quais são as as regiões, os estados, que são mais valorizados e ditos que sabem falar melhor do que determinados estados.”
Bagno é autor do livro “Preconceito linguístico: o que é, como se faz” e Nascimento escreveu “Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo”.
“Geralmente as palavras banto são colocadas dentro desse lugar de religiosidade e de forma pejorativa. Por mais que a gente tenha uma palavra dengo, que remete a delicadeza, ou cafuné, que é o contato com a outra pessoa, que tem uma relação de afeto, o que vai marcar a sociedade vai ser a macumba”, reforçou Odara.
Um importante instrumento para a mudança dessa perspectiva negativa sobre a herança africana no nosso vocabulário é a aplicação da Lei nº 10.639 de 2003. Essa lei estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira no ensino fundamental e médio.
Contudo, Odara observa que a aplicação dessa lei, que ainda está distante do ideal, ainda fica restrita justamente ao ensino de história e artes. “Muitas vezes os professores de língua portuguesa, pelas demandas que eles já têm no próprio currículo escolar, que é da dimensão da literatura e da gramática, deixam ar despercebida a Lei 10.639 na própria disciplina.”
“Fiz um estudo sobre práticas pedagógicas que se inscreveram no Prêmio Educar com Equidade Racial e de Gênero e, dentro do mapeamento, nenhum deles utilizaram as práticas pedagógicas para ensino de língua portuguesa. Muitas ficaram nesse campo das artes, história e geografia. A língua estava mais nos títulos dos trabalhos do que nas práticas pedagógicas”, enfatizou ela.
Odara se define como uma pessoa “obcecada” pelo quimbundo, idioma que ela conheceu durante um processo de autoidentificação como brasileira.
“Não me considerava brasileira por diversas questões. Uma delas é o racismo que está presente na nossa sociedade. E o quimbundo me soou como se fosse o meu lugar. Saber que o português brasileiro faz parte do quimbundo, para mim, já é preencher aquela lacuna do meu não pertencimento dentro da sociedade brasileira.”
Foi a partir daí e do interesse dos alunos dela em sala de aula em aplicativos como o Duolingo, que ela pensou em desenvolver o Alfabantu, em 2018. Depois vieram as oportunidades como pesquisadora, mais recentemente como mestranda, e como turista, ao visitar o berço da obsessão dela, Angola.
“Não sei se toda população negra também sente essa movimentação de um não lugar, mas acredito que essas manifestações culturais que foram surgindo após o movimento de escravidão, foram para os povos africanos encontraram o seu lugar nesse lugar. Onde eu vou ter um lugar? É no samba, na congada, no candomblé, e também nas palavras”.