Seguindo minha avó como um aprendiz de feiticeiro fiel, enquanto ela me apresentava as maravilhas escondidas no seu quintal, eu aprendi a ser cientista. Tudo que é realmente fundamental para seguir esta carreira – uma curiosidade infinita, saber identificar qual é a pergunta central a ser feita para a Natureza, manter a objetividade na análise dos dados coletados e, principalmente, nunca ter medo de acreditar nas respostas que a Natureza nos oferece, mesmo que ela contradiga os dogmas e tabus vigentes – eu aprendi nas aulas magistrais diárias que Dona Lygia ministrava com maestria sem igual. Como ela mesma dizia: “ser cientista é ser pago para ser criança por toda a vida”.
Já no escritório/biblioteca, ao som de toda sorte de óperas – Verdi e Puccini eram os seus compositores favoritos – emanadas de LPs acariciados mansamente pela agulha potente de uma vitrola de Hi-Fi de última geração, eu fui apresentado aos dois grandes amores de Dona Lygia: Dom Pedro I e um certo Alberto Santos-Dumont. Foi neste escritório, que Dona Lygia e seu assistente identificavam a localização de todos os pousos lunares das missões Apollo da NASA entre 1969 e 1972.Para tanto, nós usávamos um imenso mapa da Lua (ver foto) que havia sido publicado pela revista Manchete e que Dona Lygia pendurara numa das paredes do seu escritório. Foi neste mesmo mapa que, no centenário do nascimento de Santos-Dumont, em 1973, nós dois procuramos com uma lupa até achar uma cratera lunar de 8.5 quilômetros, próxima da região onde a Apollo 15 havia pousado, que acabara de ser batizada pela “International Astronomical Union” com o nome do ilustre brasileiro.
Muitos se referem a Santos-Dumont como o Pai da Aviação. Pessoalmente, eu acho este título pequeno e incompleto demais para este impávido gigante de 1,52m de altura e 50 quilos de peso. Para mim, Santos-Dumont foi um dos inventores da Ciência brasileira, título compartilhando, na minha opinião, com Oswaldo Cruz e Carlos Chagas. Uma ciência verdadeiramente tropical, que carrega no seu âmago, desde o seu parto, uma enorme dose de audácia, criatividade, humanismo, improvisação e, acima de tudo, uma resiliência e teimosia descomunais.
Como todo cientista brasileiro é capaz de confirmar em 2024, fazer ciência no Brasil não requer apenas talento e anos de estudo e dedicação, mas também uma enorme dose de paixão e obstinação cegas, uma vez que a ciência nunca fez parte das prioridades de um projeto nosso de nação. Algo que continua inexistente desde a tão improvável quanto inesperada chegada das naus de Cabral ao paraíso tupiniquim.
Recentemente, eu me dei conta que Santos-Dumont merece um outro título benemérito: o Pai dos Outubros Mágicos. Eu me explico. Curiosamente, dois dos feitos mais icónicos do nosso menino de Cabangu ocorreram no mês de outubro, sob a luz dos céus ses. No primeiro destes, ocorrido no dia 19 de outubro de 1901, um sábado, Santos-Dumont decolou com seu dirigível 6, precisamente as 14:42 da tarde, para percorrer os 11 quilómetros do percurso de ida e volta que separava o seu ponto de partida, na pequena “commune” de Saint-Cloud – a oeste de Paris - até a Torre Eiffel.
Para total choque de uma multidão de pessoas e de arinhos parisienses que não se deram conta que o seu monopólio dos céus estava prestes a desmoronar, Santos-Dumont não só contornou a bendita Torre Eiffel – cujo idealizador era seu amigo particular – como retornou ao ponto de partida, em menos de 30 minutos. Como resultado desta façanha, em menos de meia hora, Santos-Dumont literalmente anunciou silenciosamente a criação de um novo mundo; aquele em que sua invenção do voo controlado permitiria reduzir dramaticamente as distâncias entre os povos, uma vez que agora o tempo necessário para se cruzar o planeta diminuiria consideravelmente.
Na realidade, em menos de 100 anos, a ousadia de Santos-Dumont levaria o homem a pisar na Lua, precisamente no dia do seu aniversário de nascimento, em 20 de julho de 1969. Com o seu feito, Santos-Dumont recebeu o Prêmio Deutsch, idealizado pelo magnata francês Henri Deutsch de la Meurthe, no valor de cem mil francos, acrescidos de juros de 25 mil francos. Santos-Dumont prontamente doou 75 mil para que trabalhadores de Paris que haviam empenhado suas ferramentas de trabalho à justiça para pagar suas dívidas pudessem reavê-las prontamente. Os outros 50 mil foram para os mecânicos e operários que trabalhavam com ele, liderados por Albert Chapin, seu braço-direito.
Santos-Dumont voou para fazer história e cumprir a palavra empenhada –um ato quase que totalmente inexistente em toda a história nacional - não para ganhar dinheiro, um mantra quase que alienígena em 2024.
Num segundo dia de outubro (23), agora em 1906, no Campo de Bagatelle, Santos-Dumont realizou outro feito assombroso, testemunhado novamente por parisienses e arinhos novamente atônitos, mas já acostumados com as ousadias daquele brasileiro que já era reconhecido mundialmente como a primeira grande celebridade do planeta. Prontamente, às 16 horas, vestido impecavelmente como era seu hábito desde seus primeiros testes aéreos, Santos-Dumont decolou no seu avião, batizado de 14-Bis, e voou por infindáveis 60 metros, decretando, de uma vez por todas, a abertura da temporada de conquista dos céus – e do espaço – pelo Homo [not so] sapiens, para assombro de todos os seres vivos voadores do planeta – e, porque não, do Cosmos!
A partir de então, nada mais seria como antes no quartel de Abrantes, como dizia Dona Lygia! Os entendedores entenderão!
Anos depois, quando confrontado por um jornalista francês mal-educado que questionou a relevância deste singelo voo inaugural do 14-Bis, argumentando que os irmãos Wright agora eram capazes de voar mais de 200 quilômetros no seu avião, como bom mineiro, Santos-Dumont refletiu por um momento, e respondeu ao repórter, num francês impecável de quem já detinha a Legião de Honra sa, com a seguinte pérola:
- É meu filho, mas os primeiros 60 metros são sempre os mais difíceis, não é mesmo?
Como não se apaixonar por um homem que voava de terno e gravata e chapéu Panamá, pelos céus de Paris, conversando com seus novos compadres – sim, os mesmos arinhos ses, já curados do seu trauma e que agora seguiam seu novo "parça", cantarolando pelos céus parisienses? Como não se render a uma verdadeira força da Natureza? Santos-Dumont jamais esqueceu suas raízes e a terra de onde ele obteve a inspiração para realizar o sonho de Ícaro e infinitos outras gerações de seres humanos que ansiaram, um dia, se libertar das garras da gravidade e singrar os céus deste resplandecente pedaço de rocha azul – Marte que me perdoe – que nos abriga e pacientemente nos tolera por milhões de anos, apesar das nossas constantes tentativas de reduzi-la à um monte de cinzas.
É numa tarde de outubro – torcendo desesperadamente para que a Enel não me deixe sem luz -, olhando para o mesmo mapa da Lua de Dona Lygia, que rodou o mundo comigo por 35 anos, e que retornou recentemente para repousar numa parede do meu escritório paulistano, que eu escrevo esta coluna em homenagem ao homem que me inspirou desde a infância. Alguém que como todos nós nasceu e cresceu sob a luz do Cruzeiro do Sul e um dia prometeu ir ao seu encontro, usando apenas a ingenuidade da sua mente analógica, da criatividade da sua inteligência orgânica, a força dos seus braços de carne e osso, e o seu amor tão incondicional, quanto insaciável, pela eterna aventura de desafiar o impossível, por toda uma vida.
Depois de Santos-Dumont, outubro nunca mais foi igual. Enquanto houver uma criança que sonhe em ver ou fazer algo que ninguém jamais viu ou fez, outubro sempre será um mês mágico!